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Title: A Casa dos Fantasmas - Volume I
Episodio do Tempo dos Francezes
Author: Luiz Augusto Rebello da Silva
Release Date: May 5, 2008 [EBook #25330]
Language: Portuguese
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A CASA DOS FANTASMAS - VOLUME I ***
Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net
*Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
corrigidos.
Rita Farinha (Maio 2008)
VOLUMES PUBLICADOS
I--Ráusso por homizío
II--Odio velho não cança (1.^o)
III--Odio velho não cança (2.^o)
IV--A Mocidade de D. João V (1.^o)
V--A Mocidade de D. João V (2.^o)
VI--A Mocidade de D. João V (3.^o)
VII--A Mocidade de D. João V (4.^o)
VIII--A Mocidade de D. João V (5.^o)
IX--Lagrimas e thesouros (1.^o)
X--Lagrimas e thesouros (2.^o)
XI--A Casa dos Fantasmas (1.^o)
XVI--Othello--As redeas do governo
XVII--A mocidade de D. João V (drama).
XVIII--O amor por conquista (comedia)--O Infante Santo (fragmento).
XIX--Fastos da Egreja (1.^o)
XX--Fastos da Egreja (2.^o)
XXI--Fastos da Egreja (3.^o)
XXII--Fastos da Egreja (4.^o)
OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA
REVISTAS E METHODICAMENTE COORDENADAS
XI
ROMANCES E NOVELLAS--V
A CASA DOS FANTASMAS
EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES
2.^a EDIÇÃO
VOLUME I
LISBOA
Empreza da Historia de Portugal
_Sociedade editora_
LIVRARIA MODERNA
_R. Augusta, 95_
TYPOGRAPHIA
_45, R. Ivens, 47_
1908
A CAMILLO CASTELLO BRANCO
Seja-me licito, amigo, dedicar-lhe este esboço informe, fructo de
algumas horas de ocio. Quem melhor, do que o auctor de tantas
composições profundas na interpretação da vida, admiraveis na pintura do
coração e dos costumes contemporaneos, poderá desculpar o muito, que
falta n'este quadro para sair menos imperfeito, e ao mesmo tempo
apreciar em um, ou outro traço, os bons desejos e os esforços do auctor?
A epocha, que escolhi, pedia pincel mais fino, e tintas mais vivas.
Tentei vencer-me, e desenhal-a. Sei que fiquei mui inferior ao ideal,
que tinha concebido, e receio mesmo, que o enfado dos leitores castigue
a ousadia do commettimento. Espero, que o seu nome applaudido sirva de
escudo e de defensor ao modesto livro, de que elle vae ser o maior
ornamento.
Não o consultei para lhe offerecer este testemunho da minha antiga e
sincera amisade. Adivinhei a resposta, e ahi entrego em suas mãos mais
este orphão, que sae a correr o mundo. Deus lhe conceda a sorte
propicia, que elle não merece, mas que ás vezes uma boa sina proporciona
mesmo aos menos dignos.
Lisboa, 22 de Janeiro de 1865
Luiz Augusto Rebello da Silva.
A CASA DOS FANTASMAS
I
Uma noite desabrida
Era de tarde. Tinham dado cinco horas, e o dia declinava rapidamente. O
mez de maio do anno 1808, anno assignalado de successos estrondosos na
peninsula, acabava, como tinha corrido quasi todo, entre diluvios de
chuva e ventanias. A noite, cujos primeiros veus já começavam a cobrir
as terras baixas, em quanto os derradeiros raios do sol esmoreciam na
corôa dos outeiros, avisinhava-se, toldada de castellos de nuvens, que
surgiam do sul, listrando o horizonte de barras cinzentas, rasgadas de
espaço em espaço pelos clarões dos relampagos.
O ar estava tepido, ou antes quente, e todos os ruidos se iam calando
uns após outros. A immobilidade das aguas, que não arrugava o mais leve
sopro; a das arvores, cujas copas pareciam petrificadas; e as sombras,
que avultavam mais pesadas de instante para instante, revestiam a
paizagem de um aspecto gelido. Uma lufada de vento, halito abrazado da
tormenta, passava solta por cima dos campos, acamando as hervas altas,
destoucando os arbustos, e saccudindo as ramas das oliveiras, dos
alamos, e das faias, e ia morrer distante no roncar soturno e rouco dos
trovões. Algumas gotas, raras e grossas, caiam então, e a luz, offuscada
por mais espessos vapores, sumia-se de subito para reviver depois, mas
timida e desmaiada, sem alegria e sem calor. As aves fugiam, cruzando-se
e pipitando; a solidão quasi que não tinha echos; e um silencio lugubre
precedia a grande voz da tempestade, que ia principiar dentro em pouco.
Apezar das ameaças da atmosphera, um viajante trocando o conchego de
povoação commoda pelas inclemencias do tempo, tinha-se despedido da
hospitaleira casa, aonde jantára, e mettendo o pé no estribo de pau, e
apertando as dobras da manta ribatejana, sem escutar os conselhos e
vaticinios amigaveis, estimulava a mula com as largas rosetas da
classica espora de correia, obrigando-a a espertar o passo por entre os
viçosos pampanos, hoje gloria e gala da nobre villa do Cartaxo.
Em breve deixou atraz de si as vinhas, que, a esse tempo, (cultura
nascente) apenas verdejavam em uma pequena parte do terreno, que se
carrega agora de seus cachos, e achando-se em plena charneca, extendeu
os olhos pela bella e vasta planicie, desatada por algumas leguas de
ermo, não triste, nem agreste, mas tocado de risonha suavidade, e
rodeado de longes tão puros e desafogados, que a alma se consola e
refrigera de extender por elle os olhos.
O aroma alpestre das plantas; aquelle pôr do sol entre nuvens; os
lamentos da procella ao sul; e o vago indeciso de todo o quadro
compunham um espectaculo de opposições tão firmes e tão bellas, que o
viajante, quasi sem o querer, se deixou arrebatar por elle, e
insensivelmente foi imbebendo a vista nas formosuras rusticas, que de
todos os lados o convidavam. Suas feições, de uma gentileza viril e
sympathica, não inculcavam tedio ou cansaço, mas impaciencia. A elevada
estatura não se encurvava sobre os arções, e as pupillas pretas e cheias
de fogo, se a miudo fitavam os trilhos enredados com estreitas fitas
sobre o verde sombrio da charneca, denunciavam mais receio de chegar
tarde a um ponto dado, do que temor de se ver assaltado pelo temporal no
meio da jornada.
A mula, que algumas horas de repouso tinham refrescado, como se
adivinhasse os desejos do amo, despejava o passo, e o caminho; mas a
noite e a cerração ainda corriam mais. Á claridade baça do crepusculo
seguiram-se as trevas; o céu forrou-se todo de negro; e os primeiros
furacões bramiram acompanhados de um trovão proximo. A chuva principiava
a fustigar de rajadas fortes o rosto do viajante, e a cegar-lhe a
estrada inundada dos dias anteriores, e arrombada em diversas partes. A
mula, apezar de afouta e vigorosa, atolava-se, tropeçando a miudo. Na
ponte da Asseca, a varzea, que ella corta, parecia um immenso paul,
cujas aguas a cheia despenhada dos altos empolava com sussurros, que,
unidos aos silvos do vento e aos ribombos da trovoada, enchiam de horror
e de estrepito aquella scena, tão repassada de grandeza e de magestade.
Á esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se encandeiam até
Santarem, estorciam-se com o vendaval. Á direita os choupos e os
freixos, na beira dos vallados, vergavam tremulos e desgrenhados como se
mão gigante os dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clarões, em que
os céus pareciam abrir-se, golfavam de repente o seu fulgor sinistro
sobre este painel, que o tenebroso manto da procella tornava logo depois
a esconder.
Atravessando a ponte, por onde enxurrava quasi uma torrente, o viajante
procurou orientar-se. Ajudou-o uma luz ao longe. Seguindo por ella, no
fim de dez minutos encontrou-se junto do vulto massiço de um palacio
arruinado, solitariamente erguido no meio das terras, e olhando quasi
como sentinella esquecida para um angulo da estrada. Em uma das seis
janellas sem caixilhos da fachada, através das fendas das portas de
dentro, ou antes das tábuas de forro pregadas em logar de vidros,
brilhava a luz que lhe servira de norte, e pelas gretas mal juntas das
frestas do andar terreo luzia o clarão de um grande brazeiro talvez
acceso na cozinha. Applicando o ouvido sentiam-se estalar no lume os
troncos humidos, e escutava-se o meio alarido de algumas vozes e
risadas.
--Ah! exclamou o cavalleiro, detendo a mula, e derrubando sobre a cara
por um gesto machinal as largas abas do chapéu de Braga, quebradas pela
chuva. Gente na casa Negra! Quem?!...
Depois de breves momentos pareceu tomar uma resolução, e a passo,
chapinhando na agua, como se passasse um ribeiro, desviou-se, atravessou
para o outro lado, e cozido com o monte subiu por vereda ingreme até um
alto a tres ou quatro tiros de espingarda de distancia. Pelos corregos,
a uma e outra parte, estrepitavam verdadeiros riachos saltando pelas
pedras, e um relampago, fuzilando e extendendo como um lençol de fogo
por cima das trevas, descubriu-lhe repentinamente a casinha caiada, de
dois sobrados, tecto esguio, e duas janellinhas, que buscava. Cercava-a
um muro baixo de pedras soltas. O ruido monotono de uma roda, e a queda
de uma especie de cascata, sobrepujando o esparralhar da chuva, e os
gemidos do vento mostraram-lhe que estava na azenha de cima, ou no
moinho da _Raposa_, como diziam os visinhos dos arredores.
Sem se apeiar, o viajante bateu com o conto ferrado do cajado de
marmeleiro por duas vezes tres pancadas na porta, e esperou. Não foi
necessario mais. Os latidos feros de um cão de guarda, e logo depois
vagarosos passos descendo a escada, advertiram-o de que fôra ouvido.
--Oh, de dentro! bradou.
--Quem bate?! perguntou uma voz cheia.
--Eu!
--Esse eu quem é?...
--Abre!...
--Pois não!... Ao mesmo tempo o ouvido fino do recem-chegado percebeu o
leve tinir dos fechos de uma espingarda a engatilhar-se.
--Antonio! Pelo rei e pela patria!...
--Ah?! Agora é outro cantar. Lá vou.
E calando o cão, que pulava, ladrando e rosnando como furioso,
desencostou a tranca, tirou o ferrolho, e a chave rangeu duas voltas na
fechadura. Abriu-se finalmente a porta.
--Então quem é? repetiu a mesma voz, em quanto a cabeça se arriscava
fóra no escuro, sem a mão largar a espingarda.
--Manuel Coutinho. Conheces-me agora? redarguiu o hospede, apeiando-se,
e expremendo do chapéu a agua a escorrer em bica, e saccudindo a manta,
que não estava menos ensopada.--Que diluvio! murmurava por entre dentes
ao mesmo tempo. Se continúa, nadam ámanhã os saveis na tua horta,
Antonio da Cruz!
--Que se lhe ha de fazer! Como v. s.^a vem!... Bemdito e louvado seja
Deus!...
--Amen! Elle seja comnosco e nos ajude, que bem o precisâmos; redarguiu
o mancebo, porque o seu rosto moreno, mas fresco, e o cabello preto não
inculcavam mais de vinte e quatro a vinte e cinco annos.
--Cuidei que me recebias a tiro! disse rindo, e mostrando duas fiadas de
dentes finos, alvos, e eguaes, que uma dama franceza lhe invejaria para
ornar um sorriso galanteador.
--Bem vê a noite?!... Depois a gente não sabe quem lhe quer mal, e uma
bala depressa entra... Cá me entendo!... D'ahi não esperava já por v.
s.^a!...
--Não me esperavas?... mas eu tinha dito!...
--É verdade, que disse. Mas choviam raios e coriscos e sempre cuidei que
se deixasse lá ficar em baixo. Dê-me a redea da mulinha. Então não sahiu
como se queria? Foi um ovo por um real. Entre v. s.^a e enxugue-se. Vou
cá á nossa arribana, com sua licença, arranjar a Ligeira, e é um ai em
quanto volto a accender-lhe o lume... Jesus! Santo Nome de Maria! Os
relampagos cegam. Parece que nos cae o céu esta noite na cabeça com a
bulha lá de cima!
Manuel Coutinho entrou. O interior da casa, muito seu conhecido, era de
apparencia singela e rustica. Suspensa do gancho preso em uma das vigas
do tecto a candeia allumiava-a escassamente, apezar de pequena. No meio
da parede do fundo rasgava-se a chaminé baixa e ladrilhada. Á direita
uma arca de pinho alta, sem fechadura, tinha em cima um cobertôr de
papa, e sobre elle enroscado com uma fisga aberta á vigilancia em cada
olho, o gato preto do moinho, tão absorvido na sua beatitude extatica, e
na sua pachorrenta immobilidade, que os latidos do cão amigo e alliado
domestico, e as vozes do dono, nem um movimento lhe tinham podido
arrancar! Á esquerda a barra de pinho pintado tremia sobre tres pés
validos. Na cabeceira um devoto registo do milagre da Senhora da
Nazareth correspondia a outro do glorioso confessor Santo Antonio,
pregado na parede com obreias. A manta sobre o enxergão e duas pelles de
carneiro compunham a roupa d'este catre de cenobita.
Á direita, em todo o comprimento da casa, viam-se empilhados muitos
sacos de trigo destinados á mó alveira da azenha. Os de milho jaziam
mais adeante em pilhas. A fina flôr da farinha escapando-se pelas
aberturas revoava ao menor abalo, polvilhando tudo em roda. Por cima de
algumas pelles de lebre e de coelho, extendidas a seccar na parede,
pendiam o polvorinho de chifre com o fundo, ou rodella de pau, e a bolsa
de couro, ou chumbeiro, attestado de munição e pederneiras. Em um
armario, vasado no muro, e resguardado com sua cortina de riscado azul,
luziam, como prata, pelo aceio, a chaleira e a almotolia de lata, e
acastellavam-se duas rumas de pratos. Dos lados, sumptuosidade rara (!),
duas caçarolas de folha de Flandres e cabos de ferro acompanhavam a
baixella de louça. Em uma prateleira por cima da chaminé a caixa da isca
e alguns tachos e frigideiras de barro esperavam a hora de serem
chamados a serviço activo.
Uma escada empinada, de degráus toscos, verdadeiro quebra-costas, subia
de um dos angulos para o andar de cima, aonde um alçapão erguido e
quadrado abria as fauces, como se quizesse engulir os que entrassem. Era
ahi a labutação principal do moinho. As mós, rodando e zoando,
ensurdeciam casadas no ruido somnolento com a queda da levada, que por
uma longa calha de pau descia da preza a ferir a roda, e d'esta,
saltando em cachões dos baldes, ia espadanar no canal, d'onde fugia
ainda espumante a regar as hortas e as terras dos visinhos.
Dois mochos de cerejeira brava, e uma poltrona de couro, roto e cossado,
rodeavam no sobrado de baixo uma velha mesa de pau, collocada no meio do
aposento por baixo da candeia de dois bicos. No meio d'ella um cangirão
de aza larga, bojudo e vidrado, com sua tampa de cortiça guardava a
agua-pé. Um copo de canada, limpo como crystal, um prato sobre toalha
alva, meia broa de milho com um garfo de cabo de pau ao lado, e uma
frigideira de sardinhas fritas annunciavam que a ceia do moleiro ía
começar, quando fôra chamado. A navalha de mola e de ponta, um rôlo de
tabaco de picar, e algumas aparas d'elle, assim como duas capas de papel
de cigarros, estavam dizendo tambem o que elle fazia pouco antes da
visita inopinada lhe bater á porta.
Vejamos agora que razão de estado attrahia o mancebo a tal hora e por um
tempo similhante áquella casa, e o que se passou alli n'esta noite
fecunda em incidentes para os personagens, que temos de metter em scena.
II
O moinho da Raposa
O mancebo approximou-se da mesa, picou do rôlo uma porção pequena,
enrolou o cigaro entre os dedos, e, depois de o accender á luz da
candeia, assentou-se em um dos mochos, com os cotovellos fincados na
tábua, e o rosto entre as mãos, não sem primeiro ter tirado do cinto um
par de pistolas inglezas e uma faca de matto hespanhola, encubertas com
as compridas abas do gabinardo, que trajava.
Antonio da Cruz appareceu instantes depois.
Era robusto, largo de hombros e de peitos, mas esbelto. Trigueiro, e
queimado do sol, as suas feições lembravam o typo arabe. Os beiços
grossos sorriam com franqueza, e, apezar de muito rasgada, tinha graça
na bôcca, mesmo quando descubria os trinta e dois dentes alvos e agudos,
como os do felpudo molosso, que saltava em volta d'elle. O cabello rente
e crespo cortado quasi em bico sobre a testa era negro como azeviche. O
nariz revirado na ponta dava certo chiste á physionomia; e nos olhos
pardos e vivos como scentelhas brincava uma expressão de finura natural
e de malicia jovial, que lhe caìa bem, e logo á primeira vista o faziam
bem quisto.
De mediana estatura, mas proporcionado, era tido por um dos homens mais
forçosos d'aquelles contornos. O seu nome servia de grito da guerra nas
aldeias contra a brutalidade dos valentões de arraial. Nas praças de
touros em Villa Franca, em Salvaterra, ou na capital nenhum forcado o
egualava em apanhar os bois de cara, ou de cernelha. A cavallo era um
centauro; a pé não tinha par no salto, ou na carreira; em mettendo a
espingarda ao rosto aonde punha o olho punha a bala. O seu cajado
manejado por mãos de mestre varria as feiras, zombando de facas e de
espadas.
Sobrio como um anachoreta, presentido e vigilante como um mohicano, o
seu maior defeito era ser impetuoso e assomado de mais. Em o sangue lhe
subindo á cabeça, e em principiando a picar-lhe a pelle com pontas de
alfinetes, segundo elle dizia, cegava-se, corria direito ao perigo, e,
sem attender a nada, atirava-se a um precipicio.
Temente a Deus, tinha tanto de bom amigo como de implacavel inimigo.
Portuguez e patriota extremo, amaldiçoava os francezes como jacobinos, e
chorava de saudade pelo principe regente, D. João, ao qual só vira duas,
ou tres vezes, em sua vida. Manuel Coutinho affeiçoou-se a este caracter
firme, honrado, e decidido. O moinho e a horta pertenciam ao mancebo, e
Antonio trazia-os de renda. Ligado á conspiração, por emquanto quasi
inoffensiva, urdida em Lisboa contra o governo de Junot, conspiração que
regia o _conselho_ denominado _Conservador_, secretamente instituido no
dia 5 de fevereiro d'aquelle anno para auxiliar a restauração do throno
legitimo e da independencia, Manuel Coutinho confiava no humilde
camponez, e communicava-lhe até recados de importancia. Executor
discreto d'estas missões arriscadas, Antonio da Cruz comportava-se
sempre com exemplar acerto, não só enganando o faro da policia de
Lagarde, cujos espiões corriam por toda a parte, mas supportando
resignado por amor de seu amo (assim lhe chamava), e da boa causa
desafios e remoques, que em outra occasião seguramente custariam caros
aos aggressores.
--Se não é hoje o fim do mundo, bradou elle entrando e saccudindo a agua
de cima de si, não sei quando o será! Mas o lume em um instantinho está
a arder. A lenha é secca. Ora, diga, meu amo: v. s.^a traz sua vontadica
de comer, não? Do Cartaxo aqui é um pedacito menos mau... e a chuva e o
vento cavam cá por dentro como enxada em nateiro...
--Não. Não me faças nada. Se o appetite vier aqui temos de mais. Agora o
lume sim.
--Essa é boa. Ha de perdoar; não senhor. Graças a Deus o Manuel nunca
foi torto, nem aleijado, e ainda esta manhã, antes de almoço, não perdeu
a polvora e o chumbo. Andavam aquelles fidalgos a saltar nas vinhas, e
trouxe-os no alforge. Como os quer?...
E apontava para os dois coelhos mortos e pendurados junto do almario.
--Guizo-lh'os de molho de vilão n'um abrir e fechar de olhos, e depois
ha de beber-lhe em cima um, ou dois copos de um vinhinho, que me deram,
e que fica a gente a chorar por mais...
--Já te disse. O vinho e os coelhos guarda-os para ámanhã. Agora melhor
me sabe este cigarro, do que todos os manjares. Accende o lume. Temos
que falar.
O mancebo suspirou como quem se sente opprimido de tristeza, e lucta em
vão por se vencer.
O Antonio da Cruz, curvo sobre a caixa da isca, a assoprar a chamma,
ouvia-o, e percebeu-o, mas calou-se. A mecha pegou, e d'ahi a um momento
levantava-se da lareira um clarão vivo e alegre, tingindo de vermelho as
paredes e os pobres moveis da casa.
--Bem! disse Manuel Coutinho. Isto já parece outra cousa! Senta-te, e
come!
--Salvo o respeito, saiba v. s.^a que não tem pressa.
--Tem. Come e despacha-te. Depois falaremos. É preciso sair logo...
--Ah! Então a cousa aperta? Para termos de saír por uma noite
d'estas!...
--Póde bem ser a ultima da vida de umas poucas de pessoas! exclamou o
mancebo, pondo-se em pé agitado.
--Melhor o ha de fazer Deus, senhor Manuel! redarguiu o moleiro com a
sua tranquillidade apparente, que illudia os que o conheciam mal. Com
sua licença! ajuntou sentando-se á mesa, e rompendo o assalto contra a
broa e as sardinhas, regadas de copiosas libações de agua-pé. Os sacos
pesam seis alqueires, e por aquella escada acima apalpam as costellas. Á
saude de v. s.^a! A minha pena é que não quizessse provar dos coelhos e
do vinho do convento de S. Francisco. Olhe que os padres sabem escolher
do fino!...
--Que gente era aquella, que esta noite vi na Casa Negra? perguntou
Manuel Coutinho, que as proezas gastronomicas de Antonio já não
maravilhavam, porque fôra testemunha d'ellas muitas vezes.
--Gente na Casa Negra? Na Casa Maldita?!... accudiu com a bôcca cheia, e
estremecendo.
--Sim! Vi luz em cima, na terceira janella, e ouvi risadas e vozes no
andar terreo. Não sabes o que será?!
--O meu padre Santo Antonio nos accuda! Cousas do demonio, que desde que
me entendo é o unico morador d'aquelle casarão! Mas v. s.^a está bem
certo!?... Gente a estas horas alli! Não póde ser!
--Tanto póde, que havia fogo na cosinha, e gente a rir, a falar, e a
aquecer-se a elle!
Antonio da Cruz enguliu á pressa o ultimo boccado, poz á bôcca cheio a
trasbordar o copo de agua-pé, e pousando-o vasio com um suspiro, tirou o
barrete e benzeu-se.
--Olhe, senhor, creia v. s.^a o que lhe digo! tornou meio atalhado.
Gente d'este mundo não era de certo. Por estes arredores não havia quem
se atrevesse!... Ah, Jesus, Santo Nome de Maria! accrescentou mais
pallido. Deram ainda agora, á noitinha, um tiro no Antonio Simões. Dizem
que o mataram; mas o corpo não appareceu! Querem ver que foi parar a
alma...
--Antonio! accudiu o amo um pouco severo. Alma que vae não volta! Isso
são medos de criança. Os hospedes da Casa Negra estão vivos, como eu, e
tu. Agora o que preciso saber, e já, é o que são e o que fazem alli!...
--Será o sargento Cabrinha, aquelle jacobino! Andou esta manhã pelo
sitio com as milicias. Só se fôr elle! O maldito ri-se de Deus e do
diabo. Ha de chegar-lhe a sua vez.
--Prendeu alguem?!...
--Dizem que sim, ahi para os sitios do Casal do Ouro.
--Ah! exclamou o mancebo. Capaz seria elle? Se fosse quem receio!...
Ouviste dizer?...
--Um velho e sua filha. Os nomes não m'os souberam dar.
--Nem é preciso! interrompeu Manuel Coutinho em voz soffocada, e com os
olhos inflammados. O infame Lagarde cumpriu a promessa. Verá se a de um
portuguez lhe fica atraz! Os nomes sei-os eu; dizia-m'os o coração antes
de aqui entrar. Mas!...
Conteve-se, e caíu em reflexão profunda. Antonio da Cruz, tambem de pé,
e animado, desde que sabia que não era com os demonios, ou com as almas
do outro mundo a contenda, esperava, olhando para a espingarda, que uma
palavra do amo lhe pedisse o apoio do seu braço.
--Depois de curta pausa, o mancebo, renovadas as escorvas das pistolas,
e cingida a faca de matto, virou-se para o seu confidente e disse-lhe:
--Queres saber como se chama o velho, que o sargento arrasta preso a
Santarem para o entregar á vingança dos francezes? É Paulo de Azevedo
Carvalho. E sua filha...
--A senhora D. Leonor?! A noiva de v. s.^a!... Jesus... Pobre menina!
--Buscam-o para o processar como rebelde desde o caso de Mafra.
Tinham-se escondido na Aramanha, e esse villão do sargento Cabrinha, por
trinta moedas prometteu entregal-o. Não o achando já alli, correu os
arredores, e de certo o foi encontrar no Casal do Ouro pela denuncia...
--Do Sapo! Foi o Sapo, aposto! Por isso o patife andava desde hontem de
orelha fita e focinho aguçado! Só ao moinho, aqui, veiu duas vezes! Ah!
Se eu soubera! Partia-lhe outra perna. Não importa. O que não se acaba
dia de S. Braz n'outro dia se faz. Não as perde.
--Antonio! Paulo de Azevedo não ha de entrar na cadeia da villa, nem na
de Lisboa. Esta noite a «Casa Negra» terá outra historia talvez mais
feia que juntar á sua. Aprompta-te! Á meia noite saímos. Pódes resar por
alma do sargento, se o encontro!
III
Duas paginas da historia d'este seculo
Antes de proseguirmos, para maior clareza d'esta mui veridica narração,
cujo fio poderia enredar-se com as explicações de todos os momentos,
pedimos venia ao leitor para resumir em breve noticia os acontecimentos,
que formam o fundo da pintura, ou antes do esboço, que nos propozemos
traçar.
A revolução franceza, representante das forças e interesses da
humanidade, herdeira não só das aspirações e esperanças, mas tambem das
dores e resentimentos de muitos seculos, saudada em 1789 com transportes
de jubilo, em 1793 já tinha convertido a innocencia do primeiro
enthusiasmo nos accessos febris de um patriotismo sombrio, dando o
espectaculo, novo e incrivel, dos maiores crimes a par dos rasgos mais
heroicos, e das virtudes mais sublimes.
Só e contra todos arremessou audaciosamente a luva aos adversarios de
fóra e ás facções internas. Decapitou no cadafalso a realeza; repelliu
os exercitos da Europa colligada; atravessou após elles as fronteiras
inimigas; suffocou nas provincias insurgidas as saudades e as iras do
regimen decaído; e vigorosa, mesmo ao saír do berço, sobreviveu aos
delirios e excessos da anarchia. Nada a detinha, nada a assombrava!
Admirada de uns, execrada do maior numero, mas invencivel,
precipitou-se, demolindo tudo no seu impeto, até, esvaída do sangue
vertido nos patibulos e nos campos de batalha, caír por fim, quasi sem
alentos, nos braços do mais illustre de seus capitães, d'aquelle de quem
Siéyés disséra com persuasão prophetica: «que seria o senhor, porque
sabia, queria, e podia tudo!»
A ordem restituida por elle, a victoria inseparavel de suas armas, o
esplendor de tantas acções applaudidas, os milagres de uma vontade, a
que ainda obedeciam os obstaculos e o destino, compozeram essa rara
epopêa, de que Napoleão I, grande como Cesar, ou maior talvez, foi ao
mesmo tempo o heroe e o assumpto.
Guiada pela providencia, a sua mão, ao passo que ia lavrando nas
primeiras paginas da historia d'este seculo as datas memoraveis, com que
se abriu sua agitada existencia, unia, pesada como a de Attila, gloriosa
como a de Carlos Magno, á queda do passado a transformação do presente.
A fortuna muitos annos constante seguiu-o de triumpho em triumpho, desde
as planicies da Italia, immortalizadas pela sua mocidade, até aos gelos
do norte para os quaes a sorte parecia attrahil-o, e aonde o clarão de
Moscow incendiada havia de illuminar depois os funeraes do imperio.
Marengo, Eylau, Essling, Wagram, e cem estações assignaladas pelos
prodigios do seu genio, viram a terra gemer abalada pelo galope dos
esquadrões; viram os thronos vacillar, ou alluirem-se; viram os
principios nóvos germinarem grávidos do futuro nos sulcos rotos pela
inundação, quando a onda vencida recolheu ao antigo leito! Abrazada em
odio, ou cortada de espanto, a Europa contemplava aquella epocha de
terremotos e de transfigurações, sobresaltando-se com os decretos da voz
soberana, que falava pela bôcca de bronze dos canhões, e inclinando-se
serva, mas fremente, na presença das aguias, que passavam e revolviam
profundamente o mundo das idéas e o mundo dos factos, desde as bases e
os limites das monarchias, desde o solo e a familia, até ao estado
physico e social, até á organização politica e economica.
N'esta lucta de gigantes, a França e a Inglaterra, travadas como dois
athletas, combatiam sem escolher as armas. Feriam-se sempre e em toda a
parte! Percebiam que o duello era mortal, e que só podia terminar pela
ruina de uma d'ellas. Aboukir e Trafalgar tinham assegurado a supremacia
dos mares ao leopardo britannico. A Austria impaciente, mas resignada, a
Prussia rendida em Jena, a Russia desenganada em Austerlitz e Friedland
proclamavam a vaidade da liga continental.
Mas Bonaparte, na maior elevação a que fôra dado subir, tocado o apogeu,
não foi superior á fragilidade humana. Os deslumbramentos da grandeza
trouxeram a vertigem. O abysmo chamou pelo abysmo. Esquecido de que só
Deus é omnipotente quiz e ousou tudo! Gerações inteiras immoladas
semearam de cadaveres o rasto de seus passos. Os povos amaldiçoavam-lhe
a ambição como flagello. As coroas, voando da cabeça dos reis legitimos,
arrancadas pelos furacões da guerra vinham cingir a fronte plebea dos
eleitos da gloria. Retalhando o corpo exanime das nacionalidades
desmembradas pela espada, edificou na areia, suppondo fundir em bronze
esses reinos e dynastias ephemeras, que um aceno tirou do nada, que os
seus revezes sepultaram para sempre.
Repartindo pelos irmãos e os generaes os diademas e os estados, queria
ter n'elles satrapas, e não soberanos. Murat em Napoles, Joseph em
Hespanha, Luiz na Hollanda, e Jeronymo na Westphalia representaram as
peripecias d'esta ultima e arriscada phase de uma grandeza, que na
usurpação dos sceptros e na provocação das antipathias populares
encontrou o precipicio, a queda, e a lição!
Portugal, no extremo occidente, abrigado pela distancia das revoluções,
que desmoronavam tudo ao meio dia e ao norte da Europa, não se eximiu
afinal de participar tambem, e com largo quinhão, das infelicidades, que
a nenhum paiz poupou a sorte. A iniciativa do marquez de Pombal,
interrompida pela morte do soberano, que vinte e sete annos o
sustentára, apezar das conspirações da nobreza, e da adversão da familia
real, acabou com o monarcha tão notavel pela firmeza. O poder do
ministro eclipsou-se com o ultimo suspiro do principe, e com elle
expiraram as tradições viris, e os commettimentos reformadores. Um
gabinete quasi todo composto de aulicos, sujeito ao veto do confessor
valido, substituiu o mando odiado do marquez; e este poude vêr ainda do
seu desterro a mão dos emulos alçada contra a arvore, que plantára,
arvore que apenas principiava a cobrir-se de flôres, e á qual a inveja
não deixou amadurecer os fructos.
A branda e devota indole da rainha atalhou em parte os bons desejos dos
homens, que se prezavam de ainda respeitarem as maximas do grande
reinado. José de Seabra, Martinho de Mello, e após elles D. Rodrigo de
Souza Coutinho queriam continuar no caminho encetado por Sebastião José
de Carvalho; porém divididos em partidos (o francez e o inglez),
offuscados pelas intrigas dos hypocritas, e detidos pelos escrupulos,
que assustavam a consciencia da filha de D. José I, luctavam muitas
vezes em vão com a corrente, e os seus esforços a miudo naufragaram
contra os artificios dos cortezãos, e contra as declamações dos beatos,
senhores de todas as avenidas do paço.
As providencias uteis, que honraram o governo de D. Maria I,
derivaram-se do predominio conquistado sobre o animo da rainha, sua
penitente, pelo arcebispo de Thessalonica, prelado isento de
preconceitos e ornado de virtudes. Mal elle desceu ao tumulo, a visão
terrivel dos patibulos, erguidos por seu pae, tornou-se uma allucinação
perenne, e as trevas da demencia apagaram para sempre a razão vacillante
da princeza.
D. João, seu filho, empunhou as redeas do Estado, primeiro sem titulo
expresso, depois com o de regente. Amigo da tranquillidade, avêsso a
complicações e lances arrojados, humano e bondoso, era todavia mais
sagaz e penetrante, do que supporia quem o conhecesse mal. Em suas mãos
a auctoridade soberana podia enfraquecer-se e rebaixar-se, como
aconteceu, mas ferir os subditos, ou irritar os alliados, não!
Comprada a preço de grandes sacrificios, a neutralidade foi a politica
preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o arbitrio prudente
aconselhado pelas circumstancias. A republica tinha legado ao directorio
esta amizade inerte, mas facil de conservar; e Napoleão, mais altivo, ou
mais exigente, olhando quasi Portugal como colonia de Grã-Bretanha, não
encobria já no consulado as suas repugnancias pela dynastia de Bragança.
Dictando-lhe a paz em 1801, e obrigando-a a submetter-se a condições
injustas, nutriu acaso a esperança de que, não podendo executal-as, ella
lhe proporcionasse um pretexto? Não hesitando em animar a cobiça e a
rivalidade do gabinete de Madrid, queria costumal-o a invadir-nos as
fronteiras, offerecidas como pasto áquella ambição estimulada?
Seja o que fôr, a Hespanha tendo-se valido de nossas armas no
Roussillon, pagou-nos com ingratidões o soccorro, separando a sua causa
da nossa, unindo-se a Bonaparte para nos humilhar, e aproveitando a
sombra dos estandartes francezes para se apoderar de Olivença, que nunca
mais restituiu!
Na mente de Napoleão I, a idéa de precipitar do throno os Bourbons de
Hespanha, como os expulsára de Napoles e da Etruria, era idéa, que
lançára raizes firmes. No seu tribunal tambem a casa de Bragança era
condemnada por outras culpas. Accusava-a de seguir, como satellite, o
astro da Grã-Bretanha, e queixava-se de que usasse e abusasse da
neutralidade em beneficio dos interesses commerciaes dos inglezes, os
quaes, por meio da oppressiva utopia do bloqueio continental, cuidava
expellir dos mercados da Europa, fechando-lhes todos os portos desde
Lisboa até Cronstadt!
Inspirado occultamente por mr. Canning, o governo portuguez promettia
excluir o pavilhão britannico de suas praias, e não duvidava affiançar
uma declaração de guerra simulada; mas prender as pessoas e sequestrar
as fazendas dos subditos do rei Jorge, como exigia em nome da França o
seu ministro, mr. de Rayneval, era violencia, que as relações anteriores
e a ruina de grossos capitaes nacionaes e estrangeiros lhe prohibiam.
Recusou-a sem ostentação, mas com vigor.
Napoleão queria tudo, ou nada! Para elle Lisboa e o Porto eram como
puras feitorias britannicas, e, se não lh'as entregassem, estava
resolvido a mandar os seus soldados conquistal-as. Contava com a
repulsa, e no meio dos mil cuidados, que o salteavam então, acabava de
pôr o ultimo remate ao seu plano. O tractado secreto de Fontainebleau
assignado em 27 de outubro de 1807, affiançava-lhe pela cumplicidade da
Hespanha a estrada militar, de que precisava para realizar a invasão.
Junot, acampado em Salamanca á testa de vinte cinco mil homens promptos
á primeira voz, apenas aguardava as ultimas ordens. Duas divisões
castelhanas, uma de dez, outra de seis mil soldados, deviam coadjuvar as
operações do exercito francez, apoderando-se a primeira do Porto, do
Minho, e de Entre Douro e Minho, assenhoreando-se a segunda da provincia
do Alemtejo e do reino dos Algarves. O pacto ajustado entre Bonaparte e
Carlos IV, desmembrava o reino em proveito de ambos. O Principe da Paz
lucrava um estado independente de quatrocentas mil almas, composto das
provincias do sul, e denominado o principado do Algarve. A rainha viuva
do duque de Parma, filha querida do monarcha hespanhol, em compensação
da Etruria cedida ao gabinete de Saint-Cloud, recebia um reino de
oitocentos mil habitantes, formado de duas das provincias do norte, com
a cidade do Porto por capital, denominado o reino da Lusitania
Septentrional!
A marcha dos francezes correu tão rapida e atropellada, quanto era viva
e ardente a impaciencia do imperador!
Bonaparte ordenára, que entrassem a tempo de salvar das mãos dos
inglezes a nossa esquadra e os thesouros, que ella podia transportar
para a America. A familia real não o preoccupava tanto. Eram alguns
prisioneiros de menos a guardar! Nunca a obediencia foi tão fiel. Junot
voou! Passando a raia em Alcantara, precipitou-se, como torrente, por
meio do paiz, que o ciume da independencia e o amor aos principes
naturaes podia tornar-lhe todo hostil. A cada passo mil perigos o
advertiam da temeridade. Aqui eram serras alpestres, aonde um punhado de
homens resolutos facilmente o sepultaria com seus companheiros de armas!
Além eram solidões, aonde a falta de todos os recursos exaggerava as
miserias com que luctava desde que saíra de Salamanca!
Os rigores do inverno tempestuoso, as estradas arrombadas e cobertas de
agua, os campos inundados, a falta de viveres, e o odio dos moradores,
dizimavam suas fileiras rareadas pela fadiga, pela fome, e pelas
enfermidades. Tudo se conspirava para o punir e demorar a invasão; o
clima, os habitantes, e o territorio que se via obrigado a atravessar!
A firmeza do general triumphou. No dia 27 de novembro suas avançadas
batiam quasi ás portas de Arroios, e nas praias de Belem o principe
regente dava o ultimo beijamão aos vassallos consternados!
No caes e na praça não se via senão lagrimas e confusão. Os parentes
despediam-se, abraçados, como se não esperassem tornar a vêr-se. Os
escalares e bergantins carregavam para bordo as mobilias dos fidalgos e
as alfaias mais preciosas do paço e da patriarchal. Nas ruas apinhava-se
o povo attonito. Cercada do cortejo doloroso do infortunio, a familia
real era o alvo, em que se empregavam os olhos de todos.
No meio das damas, açafatas, camaristas, e criados, pallidos e
suffocados, o principe D. João, sua esposa a princeza D. Carlota, seus
filhos, e sua mãe a rainha D. Maria I, cujos gritos de demencia cortavam
o coração, diziam o ultimo adeus á terra do seu berço!
A multidão soluçava e estendia os braços em vão, como se quizesse
retel-os. Um decreto datado da vespera tinha declarado que os conselhos
pusillanimes prevaleciam. Em vez de chamar o reino ás armas, imitando o
valor de seus antepassados, D. João ia refugiar-se além do Atlantico, no
Rio de Janeiro, deixando nomeada uma regencia á qual deferia a triste
missão de abrir as portas da capital ás tropas inimigas.
Demorada no Tejo pelos temporaes, a esquadra portugueza só largou as
velas no dia 29. Nessa mesma noite arrastavam-se desfallecidos pelos
arrabaldes de Lisboa os invasores, cuja sombra sossobrára o peito de um
descendente de D. João I! Quasi nús, descalços, esmorecidos, recrutas
imberbes com as espingardas cobertas de ferrugem, inuteis, ou partidas,
os soldados do corpo de occupação infundiam mais dó e piedade, do que
temor e respeito no animo dos que os viam desfilar. Escudava-os, porém,
o nome de Napoleão com o seu prestigio. A hora dos desenganos ainda não
tinha batido.
Junot entrou no dia 30, hospedou-se no palacio do barão de Quintella, e
poz algumas auctoridades suas. No dia 13 de dezembro, depois de uma
parada no Rocio, a bandeira tricolor foi arvorada nas ameias do
castello. Começava o primeiro acto do attribulado drama, cujo desenlace
encerrou a capitulação de Paris, e a abdicação de Fontainebleau! As
tropas hespanholas acompanhavam os movimentos dos alliados. O general
Taranco apoderou-se do Porto; o marquez del Soccorro, senhor do
Alemtejo, adeantou-se até Setubal. As forças dos invasores cercaram-nos
por todas as partes.
Ás saudades cada vez mais vivas da dynastia desterrada, aos
resentimentos provocados pelo jugo estranho, que, arrogando-se fóros de
conquista em plena paz, cada dia era mais detestado, uniam-se os
aggravos e violencias inseparaveis de uma occupação, que só podia
sustentar-se pelo rigor.
Amanheceu finalmente o dia 13 de fevereiro de 1808, o qual, rasgando o
véu de todo, revelou sem disfarce os designios de Bonaparte. Rodeado de
soldados e canhões, ao som das salvas das fortalezas de mar e terra,
Junot proclamou sem hesitar a usurpação insolente de todos os direitos
da soberania. A casa de Bragança, disse elle no seu edital, acabou de
reinar. O imperador dos francezes será de ora em deante o protector e o
arbitro dos destinos da monarchia! Para consolar os portuguezes da perda
da independencia, o duque de Abrantes prometteu-lhes mil beneficios, e
assegurou-lhes que um dia até o Algarve e a Beira Alta haviam de ter o
seu Camões!
Os habitantes preferiam a epopea viva á epopea escrita, e poucos mezes
depois com a espada em punho recordavam as proezas de seus avós,
repellindo os estrangeiros.
As armas nacionaes picadas e substituidas pela aguia corsa, a
contribuição forçada, decretada em 7 de dezembro de 1807, e repartida
pelos moradores abastados de Lisboa, que nem o pretexto da resistencia
tinham offerecido á cubiça, irritando os animos excitaram tumultos na
capital e rixas em varias terras.
Correu sangue de parte a parte. Nas provincias os roubos impunes, os
desacatos da soldadesca nas egrejas, e as tropelias de tropas
licenciosas e pouco disciplinadas, ainda cansavam mais a paciencia
publica.
A sorte da capital e do Porto não era menos infeliz. Lagarde, detestado
pela sua tyrannia na Italia, e Perrot assaz inventivo em oppressões,
cobriam de uma rede de delatores os pontos, onde suppunham que podiam
abrigar-se os seus adversarios, faziam leilão publico da clemencia, e
abriam, ou cerravam as portas das prisões com chaves de ouro. Tinham
pressa de enriquecer!
Adivinhariam que o seu governo não havia de durar muito? Os factos
provaram mais esta vez ainda os perigos de tão errado systema. Filho da
violencia, apenas o desamparou a força que era o seu unico apoio,
despenhou-se nos abysmos, que elle proprio afundára.
IV
O bem soa, o mal voa
De ordinario voltam-se contra os poderes odiados os proprios meios
empregados para algemar os povos. As visitas domiciliarias, as buscas,
as denuncias, as multas, os encarceramentos, todos os instrumentos de
tortura moral, em fim, excogitados pelo genio assolador de Lagarde,
produziam effeitos contrarios aos que elle esperava colher, ulcerando o
orgulho nacional, enfurecendo as populações, e predispondo-as para
vingarem no primeiro ensejo todas as offensas de uma vez.
Em Mafra, aonde um conflicto casual custára a vida, ou o sangue a alguns
soldados de Junot, a crueldade da repressão, confiada ao general Loison,
acabou de exasperar os animos. O desditoso Jacintho Correia expiou com o
supplicio a culpa, quasi geral, da aversão aos invasores.
Estes rigores, longe de as firmarem, tornaram mais frageis as bases da
dominação estrangeira, que a todos os instante via desabar o edificio
vacillante do seu poder. As devassas e monterias ordenadas contra as
pessoas implicadas n'esta guerra surda, mas implacavel, ameaçando alguns
innocentes, apenas réos do horroroso delicto de aborrecerem a usurpação,
recrutou em favor da reacção patriotica numerosas e decididas adhesões.
Paulo de Azevedo Carvalho, que no «Moinho da Raposa» ouvimos citar como
uma das victimas da intendencia geral da policia, salvo quasi por
milagre, graças á rapidez da fuga, das garras dos emissarios de Lagarde,
vagueára de asylo em asylo, acossado de perto, mas sempre protegido,
desde Torres Novas até Santarem pela generosa cumplicidade, que lhe
patenteava todas as portas, do palacio até á choupana, apagando logo
depois com discreto silencio o menor vestigio de seus passos.
Uma imprudencia ajudou os que o perseguiam. Sua filha partiu de Torres
Vedras para ir encontrar-se com elle, e os olhos de argos da policia
seguiram-a na jornada até ao humilde casal, escondido nas mattas da
Aramanha, onde a esperava Paulo de Azevedo, e onde lhe abria os braços a
hospitalidade rude, mas sincera, do honrado fazendeiro Antonio Simões.
Disfarçados em mendigos ou em jornaleiros, os agentes de Lagarde
depressa descobriram o foragido no seio da casa rustica, em que se
abrigava. Assaltaram-a de noite com um cordão de milicias ás ordens de
Estevan Cabrinha sargento no regimento de Rio Maior, e capaz de vender o
sangue de mãe e irmãos, uma vez que o preço correspondesse. Falharam,
porém, todas as precauções. Cabrinha errou o salto. Avisados a tempo o
pae e a filha evadiram-se na vespera, e o sargento só colheu da ruidosa
diligencia as maldições de Antonio Simões, maldições e despresos, que
estava costumado a engulir, como ossos do officio, mas que registrava
cuidadosamente para as descontar aos devedores na hora opportuna.
D'esta vez a divida não esperou muito. Uma busca de contrabando sobre
denuncia falsa proporcionou-lhe o desejado pretexto. Antonio Simões da
Aramanha deu-lhe o gosto de entrar dias depois sob seus auspicios na
cadeia de Santarem, quasi arrependido da soltura de lingua, com que
tinha lançado em rosto ao perseguidor as lagrimas e a ruina das
familias, e os crimes contra a patria. O fazendeiro, todavia, não gemeu
nos ferros de el-rei, como se dizia então, sem jurar pelas costellas ao
malsim. Deante de testemunhas protestou moel-o com o cajado de
zambujeiro, especie de clava, que achatava um homem como uma bolacha, e
vozes chocalheiras avisaram o sargento da promessa caridosa. Cabrinha
enfiou. O intendente geral da policia Lagarde servia-se do mastim e
açulava-o contra o Ribatejo, não regateando ao mercenario venal as
recompensas; mas era duvidoso que podesse eximir-lhe o corpo do premio,
affiançado pela gratidão de muitas victimas.
Em quanto Paulo de Azevedo respirasse livre, o amor proprio e a bolsa de
Cabrinha padeciam, e não era elle homem que dormisse, quando o interesse
o chamava com voz activa. Suppondo o cavalleiro de Mafra ainda proximo,
deixou-o socegar por dias, e valendo-se da ardileza de um subalterno
sagaz, digno assessor de suas virtuosas emprezas, o coxo Gaspar Preto,
conhecido pela expressiva alcunha do _Sapo_, mandou-o bater os
arredores, na idéa de que a vista de lince do agente, com mais
facilidade desencantaria, ainda quente, o ninho aonde se refugiava a
presa.
Não se enganou. O _Sapo_, cujos brios avivára a esperança de rasoaveis
lucros, entrou sem demora em campanha, e tres dias depois trouxe-lhe a
agradavel nova de que o cavalheiro e sua filha se cobriam com o tecto
modesto de uma casa, pouco mais do que choupana, solitaria, e situada
nas abas da risonha povoação do Casal do Ouro no meio das vinhas e
olivedos, que o vestem de verdura.
O sargento não perdeu tempo. Apenou seis milicianos fieis ao copo e ao
cangirão, e, acompanhado por elles, prendeu de tarde e á traição a Paulo
de Azevedo e a Leonor. Temendo, porém, que o povo se alvoroçasse, apezar
das ameaças da trovoada metteu-se a caminho, não sem olhar a miudo para
traz, receioso, sobre tudo na charneca, de que a bala perdida de uma
espingarda lhe testemunhasse o reconhecimento grangeado por seus longos
e valiosos serviços!
O homem põe, e Deus dispõe! A fortuna que o protegêra, detendo Manuel
Coutinho no Cartaxo, sem o que teria encontrado o seu amigo e a sua
noiva presos, (lance de certo fatal ao sargento), mostrou-se logo
contraria a Cabrinha, não demorando uma hora, ou duas mais, tambem, o
temporal, o qual, perto da Ponte da Asseca rebentou com violencia tal,
que o constrangeu, á falta de melhor, e não sem grandes arrepios de medo
seus, e dos soldados, a descançar aquella noite no palacio arruinado,
temido na visinhança pelo significativo nome de _Casa Negra_, ou de
_Casa Maldita_.
O _Sapo_, entretanto, não ficára ocioso.
Sabendo que Antonio Simões da Aramanha fôra solto da cadeia de Santarem
por ordem do juiz de fóra, e que n'essa mesma tarde vinha dormir ao
Casal do Ouro, doeram-lhe de repente todos os ossos, como se o cajado
monumental lh'os triturasse, similhante a mangual na eira, e assentou
livrar-se a si e ao sargento da promettida sova, interceptando na
estrada o robusto fazendeiro com uma bala.
Esperou-o, pois, atraz de um vallado, em azinhaga escura e estreita, ao
anoitecer. Escutando o ruido de passadas cheias renovou a escorva,
engatilhou a espingarda, metteu-a á cara, e com a tranquillidade, com
que poderia desfechar sobre uma lebre, disparou por entre as ramas sobre
um vulto, que vinha dobrando a quina do caminho, e que soltando um grito
agudo baqueou por terra.
--Deus seja com a sua alma! exclamou o assassino, saltando o vallado, e
contemplando prostrado, e com o rosto banhado em sangue o corpo da
victima, que todavia conheceu pela estatura e pelo trajo ser Antonio
Simões da Aramanha.
--Está com Christo! ajuntou depois de olhar para elle instantes. Este já
não morde. Falta o Antonio da Cruz!... Tambem lhe ha de chegar a sua
vez!
Feito este responso, torcendo a perna, e apressando os saltos, em que
despejava mais caminho do que os sãos, o coxo passou por entre as
silvas, e atravessando pelas vinhas e hortas, veiu saír muito distante
do logar do crime, ao alto do valle.
Soou a noticia do tiro dado em Antonio Simões. As mulheres, que se
recolhiam do trabalho do campo, encontraram o corpo ensanguentado na
azinhaga, e correndo e clamando, tocaram a rebate com a historia do
homicidio por todas as portas. Juntou-se gente, accudiram alguns amigos,
que o morto contava na terra, e em procissão encaminharam-se ao sitio
aonde o desgraçado fazendeiro devia jazer, que era aonde a azinhaga
cortava entre a Ponte de Asseca e a Casa Negra.
Caso inaudito, e que fez erriçar de espanto as grenhas hirsutas dos
aldeões, por baixo dos barretes de lã e dos chapéus desabados! Nem rasto
da victima! Sómente duas poças de sangue, e a cama feita pelo cadaver na
terra molhada denunciavam a verdade das camponezas e a existencia do
delicto!
Quem roubára aquelle corpo á sepultura christã? Quem fôra o assassino? A
estas duas perguntas respondia a superstição, que só poderia ter sido o
inimigo do genero humano, porque a azinhaga não se via trilhada senão